quinta-feira, 9 de maio de 2013

CALVINO EM TRÊS ATOS: OS CLÁSSICOS, NIETZSCHE E BORGES.



 
A crítica é uma voz para quando a obra fala no leitor.

Numa edição especial que adquiri, há pouco mais de um ano, da Penguin Classics Companhia das letras, o aclamado livro “Por que ler os clássicos” do critico italiano Italo Calvino, é editado numa versão especial com dois de seus ensaios “Porque ler os Clássicos” e “As odisseias na Odisseia.” A pequerrucha edição, discreta e charmosa, me chamou atenção por um principio de estilo e sem duvida pelo exemplo. Digo exemplo, pensando encontrar aí, nesta edição, um sentido além de um exemplar comemorativo de um contrato comercial entre as editoras – Companhia das Letras e a Penguin – mas sim, uma sugestão estética que partindo dos textos e suas traduções se corporificam num ”tratamento editorial” invulgar.

Em tempos que o livro impresso vai se tornando um exemplar raro, a preocupação com a exibição e apresentação do conteúdo literário revela uma atenção sobre a questão do gosto e satisfação no exercício da fruição estética das obras. Assim como estratégia para formar “grandes leitores” e em preocupação de colocar a disposição para uma “leitura de formação”, certas obras tidas como necessárias, vêm à luz sob a bula dos livros  clássicos.

Para não incorrer no mal de nos construirmos sobre o costume de mais cita-los que lê-los, como insinua Calvino, devemos saber-nos reservados. Os ciclos de leituras (ou os cursos superiores) levam-nos a sistematizar, com algum método, o contato que temos com o mundo literário, reconhecendo na “idade madura” mais “detalhes, níveis e significados a mais”, já que, quando o leitor, “na maturidade”, configuram melhores condições para aprecia-los. 

E “apreciá-los”, ou seja, fruí-los devidamente, significa poder encontrar-se no interior do espaço da obra – esse “entre lugar” no mundo real e mundo imaginário mediado pela literatura. No processo de conhecer a realidade literária, as fronteiras entre “ler” e “reler”, sendo considerada a “perspectiva histórica”, permitem as particularidades de interpretação decorrentes da leitura.

O clássico “nunca terminou de dizer” por que carrega elementos presentes na “cultura” ou “culturas” – na “linguagem ou nos costumes” – pelas quais percorreu. Calvino opera uma distinção entre clássicos antigos e modernos. Observando sobre o significado das obras questões como “incrustações, deformações ou dilatações” e a capacidade de “reencarnação” das personagens e das obras na atualidade e uma nota importante que me permito reproduzir aqui:

A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução, o instrumental critico, a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais do que ele.   

Essa proposição reflete de alguma maneira um diálogo com o pensamento de Benedetto Croce, outro crítico italiano, que baseava-se na irredutibilidade da obra de arte.Na sua oitava tese sobre os clássicos, Calvino assevera que este, “provoca incessante uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente a repele para longe”.  Já que produz sempre “a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência” o italiano opera a distinção sobre o conhecimento que tem-se sobre as obras “por ouvir dizer” – como em Spinoza que distingue o conhecimento em três etapas do ouvir dizer, da experiência e do conhecimento de fato – e de que “quando são  lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.”

A “centelha” uma belíssima imagem que representa o momento em que somos absorvidos o para o interior da obra, para o mais real – aquilo que podemos experimentar – de seu mundo literário. Assim, o leitor, aos poucos entre uns e outros títulos, vai formando (escolhendo) os “seus” clássicos – esse conjunto de autores e obras que despertam a fagulha da imaginação e nos alçam ao mundo construído pela narrativa ou pelo eu lírico.

Aproximando em seguida a “ideia de clássico” a “um universo” o que, segundo Calvino, configura-o enquanto um “talismã”. A referência à noção de livro total, de Mallarmé, caracteriza o clássico aliado à capacidade de “ressonância” – uma expressão mais metafórica para o diálogo operado pela intertextualidade, onde se ouvem os ecos de outros monumentos artísticos da cultura literária no caso do pensamento de Calvino,

[...

Trazendo Nietzsche ao ensaio, para dialogar em um plano filosófico com a ideia de “clássico” – é claro que, se supera aqui a pré-noção de clássico ligado à antiguidade, o que poderia gerar uma série de considerações, mas não obstante, de acordo com o pensamento nietzschiano “os instintos que distinguem os gregos dos outros povos se exprimem em sua filosofia. Mas são precisamente seus instintos << clássicos >>” – mas seguindo o ensaio, tratando o sentido histórico e aproximando da percepção de que a arte prescreve e perpetua, ele diz que “há uma ponte invisível de um gênio a outro – aí está a verdadeira “história” objetiva de um povo; qualquer outra é variação inumerável e fantástica numa matéria inferior, cópias de mãos inábeis.” Passagem esta que pode levar-nos  a pensar no teor de realidade concentrada que encerra uma “obra clássica” nesse sentido, o filósofo acentua:

<< No mundo da arte e da filosofia o homem trabalha para uma “imortalidade do intelecto”.
Só a vontade é imortal; comparada com ela, como parece miserável essa imortalidade do intelecto realizada graças à cultura que pressupõe cérebros humanos: – por aí se vê a que categoria isso chega para a natureza. (...)
A procriação platônica do belo – logo, para o nascimento do gênio é necessária à ultrapassagem da história, ela deve mergulhar e eternizar-se na beleza. >>

Para uma questão de lógica filosófica avançando no encontro com nosso tema em discussão, no aforismo de número 26 d’ O Livro do Filósofo, o alemão pontua de maneira sempre ácida:

 << Supremamente notável que Schopenhauer escreva bem. Sua vida tem também mais estilo que a dos universitários – mas as circunstâncias dela são perturbadoras!
Ninguém sabe agora o que é um bom livro, é necessário mostrá-lo: não percebem a composição. A imprensa arruína sempre mais o sentimento.
Poder reter o sublime!>>

...]

– e a obra é dotada de uma “continuidade cultural” já que esta se encontra numa espécie de “genealogia” – que desde a antiguidade até a modernidade amadurece seus frutos nos galhos dos séculos sustentados no caule da história.

A investigação da ordem dos livros “clássicos”, que interpreto mais como necessários à compreensão da vida moderna e sua constante transmutação no contemporâneo, com seu “pano de fundo barulhento” e desestruturante, lança-nos o imperativo processo da invenção de um acervo, como quem inventa um “entre lugar” como a labiríntica e livresca Buenos Aires de Borges, um lugar mítico, e “seu”, um jeito menos solitário de estar sozinho, na curta experiência da existência.

Porque se os “clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos”, sem dúvida, devemos concordar com Calvino que, “ler é melhor que não ler”, numa resposta de natureza filosófica e poética, utilitária e objetiva,  fundamentalmente racional, como uma verdadeira crítica à vida estética-social contemporânea, expressando o sentido da experiência literária, como sendo quando, a obra fala no leitor, e através dele, e, de outras obras, permanece.

***




SOBRE O TEMPO EM BORGES.

“O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto que nos situamos para olhar para trás ou para frente.” (26)

Calvino ao falar sobre Jorge Luis Borges, e relatar seu sucesso na Itália, remonta aos anos 50, com a primeira tradução de Ficciones, sob o título de a Biblioteca de Babete. Após a leitura em tradução francesa um italiano propôs a tradução, que precisa de um “tradutor apaixonado”, opera omnia, Calvino aponta uma relação direta entre “êxito editorial” e o “êxito literário” dizendo que “o êxito editorial foi acompanhado de um êxito literário que é ao mesmo tempo causa e efeito do primeiro” (p.246)

“Definição crítica de seu mundo” e “sobre o gosto e sobre a própria ideia de literatura” (idem) reconhece Calvino uma influencia de mais de 20 anos a partir das leituras de Borges. Segundo Calvino, Ficções e Aleph são exemplos centrais do conto borgiano. Observa as metamorfoses do “Borges ensaísta, o Borges poeta com seus núcleos de conto”, “núcleo de pensamento”,”desenho de ideias”. Para Calvino há em Borges uma “ideia de literatura como mundo construído e governado pelo intelecto” para isso usa Valery “prosador e pensador”, justificando que essa literatura “aponta uma revanche da ordem mental sobre o caos do mundo.” E assim a literatura de Borges para Calvino é “ver tomar forma um mundo a imagem e semelhança dos espaços do intelecto, habitado por um zodíaco de signos que correspondem a uma geometria rigorosa”.

“Razões mais precisamente conexas com a arte de escrever” permitem a emergência de uma “economia da expressão: Borges é um mestre do escrever breve” – “milagre estilístico, sem igual na língua espanhola, de que só Borges tem o segredo.” (p.248)

No contexto da operação da linguagem entre “ideia da forma” e a “substância dos conteúdos” Borges cria, segundo Calvino, a “invenção de si mesmo como narrador” para por exemplo, “passar da prosa ensaística para a prosa narrativa, fingiu que o livro, que desejava escrever já estivesse escrito, escrito por um outro, por um hipotético autor desconhecido, um autor de uma outra língua, de uma outra cultura, e descreveu, resumiu, resenhou esse livro hipotético.” (248)

“Assim como faz parte das passagens obrigatórias da crítica sobre Borges observar que cada texto dele duplica o próprio espaço através de outros livros de uma biblioteca imaginária ou real, leituras clássicas, eruditas ou simplesmente inventadas.” (248-249)

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