sexta-feira, 7 de março de 2014

Leitura latino americana de um luso-oriental.


Lúbrica

Quando a vejo, de tarde, na alameda,
Arrastando com ar de antiga fada,
Pela rama da murta despontada,
A saia transparente de alva seda,
E medito no gozo que promete
A sua boca fresca, pequenina,
E o seio mergulhado em renda fina,
Sob a curva ligeira do corpete;
Pela mente me passa em nuvem densa
Um tropel infinito de desejos:
Quero, às vezes, sorvê-la, em grandes beijos,
Da luxúria febril na chama intensa...
Desejo, num transporte de gigante,
Estreitá-la de rijo entre meus braços,
Até quase esmagar nesses abraços
A sua carne branca e palpitante;
Como, da Ásia nos bosques tropicais
Apertam, em espiral auriluzente,
Os músculos hercúleos da serpente,
Aos troncos das palmeiras colossais.
Mas, depois, quando o peso do cansaço
A sepulta na morna letargia,
Dormitando, repousa, todo o dia,
À sombra da palmeira, o corpo lasso.

Assim, quisera eu, exausto, quando,
No delírio da gula todo absorto,
Me prostasse, embriagado, semimorto,
O vapor do prazer em sono brando;
Entrever, sobre fundo esvaecido,
Dos fantasmas da febre o incerto mar,
Mas sempre sob o azul do seu olhar,
Aspirando o frescor do seu vestido,
Como os ébrios chineses, delirantes,
Respiram, a dormir, o fumo quieto,
Que o seu longo cachimbo predileto
No ambiente espalhava pouco antes...
Se me lembra, porém, que essa doçura,
Efeito da inocência em que anda envolta,
Me foge, como um sonho, ou nuvem solta,
Ao ferir-lhe um só beijo a face pura;
Que há de dissipar-se no momento
Em que eu tentar correr para abraçá-la,
Miragem inconstante, que resvala
No horizonte do louco pensamento;
Quero admirá-la, então, tranqüilamente,
Em feliz apatia, de olhos fitos,
Como admiro o matiz dos passaritos,
Temendo que o ruído os afugente;
Para assim conservar-lhe a graça imensa,
E ver outros mordidos por desejos
De sorver sua carne, em grandes beijos,

Da luxúria febril na chama intensa...
Mas não posso contar: nada há que exceda
A nuvem de desejos que me esmaga,
Quando a vejo, da tarde à sombra vaga,
Passeando sozinha na alameda...

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'




Primeiro poema de Pessanha, publicado em 1885, Lúbrica é uma peça literária feita de ópio e poesia. Na abertura do poema, a construção “a vejo” nos deixa uma sutil indicação sobre a leitura. Quando o poeta aponta para uma visão indeterminada, que não permite definir o que vê, com isso, abre precedente para a interpretação de que “LÚBRICA” é uma alucinação do ópio. Mais propriamente, uma “visão” de forte impacto de tal maneira enlevante causada pelo uso do excitante – provavelmente, podemos realizar essa consideração principalmente por fatores biográficos da vida do autor como sua estadia em Macau, período no qual realiza um constate uso de opiaceos. Além da citação no poema de representações de chineses, semelhante as  que se observam em Fernando Pessoa no poema Opiário e Pablo Neruda em El ópio en Leste.


Mas não apenas.  Quando escreve “com ar de antiga fada”, sua descrição da figura avistada é toda ela feita de alegorias e metáforas deslocadas da realidade concreta e mais imediata, a não ser como efeito de cenário – que no contexto dever ser mesmo a descrição mais próxima do mundo concreto – aproximando tanto a narrativa do texto poético quanto as suas imagens a um universo não literal, ainda que sua sugestão ao leitor é a de uma aparente figura “real”. No entanto a figuração desta presença feminina no jardim é sublimada, assim como na referência à fada, figura irreal, que povoa os contos e histórias fantásticas, pode ser vista como um indício de que a visão tem influências transcendentais.  Adjetivos usados como “transparente” para descrever a personagem e seus adereços só corroboram a ideia de que o poema trata de um instante inefável, no qual a sensação de transparência revela a coisa etérea.


A posição do poeta, expressa mediata seu eu lírico é exata. Correspondente ao estado de meditação, enquanto uma como categoria de elevação do pensamento, consequentemente sob o efeito do flor oriental, que permite alcançar a possibilidade do “gozo” prometido. Os dois versos seguintes nos deixam ainda mais claro que, de fato, onde a imagem acontece e todo o poema tem forma e cor, onde a “Lúbrica” de fato existe e está é na “mente” do poeta – “Pela mente me passa em nuvem densa / Um tropel infinito de desejos”. Na “luxúria febril na chama intensa” denuncia de onde parte a miragem: inevitavelmente de algum torpor com origem no ato de queimar o ópio. E então o poema e sua construção se revelam:


Mas, depois, quando o peso do cansaço
A sepulta na morna letargia,
Dormitando, repousa, todo o dia,
À sombra da palmeira, o corpo lasso.

Assim, quisera eu, exausto, quando,
No delírio da gula todo absorto,
 Me prostrasse, embriagado, semimorto,
 O vapor do prazer em sono brando;

“Cansaço”, “morna letargia”, “dormitando, repousa”, “o corpo lasso”,  bem como: “exausto” “no delírio da gula”, “prostrasse”, “embriagado”, “semimorto”, “o vapor do prazer em sono brando”, denotam o clima de torpor em que embebido o corpo dela revela a condição na qual se encontra a mente do poeta, e por sua vez o sujeito da voz poética anunciada se equaciona diante da imagem poética por ele construída, tornando o criador sua própria criatura. Assombrado assim pelos “fantasmas da febre”, o poeta encontra com esta aliteração (uma solução poética de um extraordinário valor estético) a dimensão do estado em que se acha o escritor, e talvez seja a melhor definição da LÚBRICA – um fantasma que só é possível de ser visto na febre que o ópio lhe causa. Em seguida dois versos abaixo desta afirmação de fantasmagoria, o verbo aspirar diz respeito à ação de usar o entorpecente, assim como se faz ao fumegar, fumar.

"Como os ébrios chineses, delirantes, /Respiram, a dormir, o fumo quieto,/ Que o seu longo cachimbo predileto/ No ambiente espalhava pouco antes...". Estes versos compõem a estrofe chave. O que nos aproxima de nossa tese, já que, ele mesmo diz que, no ambiente provavelmente onde o poeta estava, se espalhava o olor do queima do ópio e a fumaça que exalava dos cachimbos conduzia a “essa doçura” [...]/ “Me foge, como um sonho, ou nuvem solta”. O que, com certeza, nos remete a sensação de prazer causada pelo ópio, e o efeito em que estava se envolve, também compõem o quadro semântico de palavras que nos inspiram a levar adiante nossa interpretação, já que o poeta diz em seguida que: “Que há de dissipar-se no momento /Em que eu tentar correr para abraçá-la,/ Miragem inconstante, que resvala/No horizonte do louco pensamento”.

E novamente imagens como fuga, sonho e nuvem, tocam a ideia de uma imagem praticamente surreal que ao “dissipar-se”, “miragem inconstante”, a ideia de que desaparecerá quando for tentar tocá-la, revelam ainda mais a condição de estamos adentrando “no horizonte do louco pensamento”, só encontrados em estados espirituais e de transe muito particulares. Eu bem queria me alongar, mas como escreveu o poeta,  [...] não posso contar: nada há que exceda /A nuvem de desejos que me esmaga”, então, uma imagem como esta que denota a sensação de uma “feliz apatia”, nos faz, assim como na canção, retomar na “chama intensa”, os fantasmas da febre que se sente enquanto se despeja o delírio em que se esmaga.

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