CALVINO EM TRÊS ATOS: OS CLÁSSICOS, NIETZSCHE E BORGES.
A crítica é
uma voz para quando
a obra fala no leitor.
Numa edição
especial que adquiri, há pouco mais de um ano, da Penguin Classics Companhia
das letras, o aclamado livro “Por que ler os clássicos” do critico italiano
Italo Calvino, é editado numa versão especial com dois de seus ensaios “Porque
ler os Clássicos” e “As odisseias na Odisseia.” A pequerrucha edição, discreta
e charmosa, me chamou atenção por um principio de estilo e sem duvida pelo
exemplo. Digo exemplo, pensando encontrar aí, nesta edição, um sentido além de
um exemplar comemorativo de um contrato comercial entre as editoras – Companhia
das Letras e a Penguin – mas sim, uma sugestão estética que partindo dos textos
e suas traduções se corporificam num ”tratamento editorial” invulgar.
Em tempos
que o livro impresso vai se tornando um exemplar raro, a preocupação com a
exibição e apresentação do conteúdo literário revela uma atenção sobre a
questão do gosto e satisfação no exercício da fruição estética das obras. Assim
como estratégia para formar “grandes leitores” e em preocupação de colocar a
disposição para uma “leitura de formação”, certas obras tidas como necessárias,
vêm à luz sob a bula dos livros clássicos.
Para não incorrer no mal de nos construirmos sobre o costume de mais cita-los que lê-los, como insinua Calvino, devemos saber-nos reservados. Os ciclos de leituras (ou os cursos superiores) levam-nos a sistematizar, com algum método, o contato que temos com o mundo literário, reconhecendo na “idade madura” mais “detalhes, níveis e significados a mais”, já que, quando o leitor, “na maturidade”, configuram melhores condições para aprecia-los.
E “apreciá-los”, ou seja, fruí-los devidamente, significa poder encontrar-se no interior do espaço da obra – esse “entre lugar” no mundo real e mundo imaginário mediado pela literatura. No processo de conhecer a realidade literária, as fronteiras entre “ler” e “reler”, sendo considerada a “perspectiva histórica”, permitem as particularidades de interpretação decorrentes da leitura.
O clássico “nunca terminou de dizer” por que
carrega elementos presentes na “cultura” ou “culturas” – na “linguagem ou nos
costumes” – pelas quais percorreu. Calvino opera uma distinção entre clássicos
antigos e modernos. Observando sobre o significado das obras questões como
“incrustações, deformações ou dilatações” e a capacidade de “reencarnação” das
personagens e das obras na atualidade e uma nota importante que me permito
reproduzir aqui:
A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução, o instrumental critico, a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais do que ele.
Essa
proposição reflete de alguma maneira um diálogo com o pensamento de Benedetto
Croce, outro crítico italiano, que baseava-se na irredutibilidade da obra
de arte.Na sua
oitava tese sobre os clássicos, Calvino assevera que este, “provoca incessante
uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente a repele para longe”. Já que produz sempre “a descoberta de uma
origem, de uma relação, de uma pertinência” o italiano opera a distinção sobre
o conhecimento que tem-se sobre as obras “por ouvir dizer” – como em Spinoza
que distingue o conhecimento em três etapas do ouvir dizer, da experiência e do
conhecimento de fato – e de que “quando são
lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.”
A “centelha”
uma belíssima imagem que representa o momento em que somos absorvidos o para o
interior da obra, para o mais real – aquilo que podemos experimentar – de seu
mundo literário. Assim, o leitor, aos poucos entre uns e outros títulos, vai
formando (escolhendo) os “seus” clássicos – esse conjunto de autores e obras
que despertam a fagulha da imaginação e nos alçam ao mundo construído pela
narrativa ou pelo eu lírico.
Aproximando
em seguida a “ideia de clássico” a “um universo” o que, segundo Calvino,
configura-o enquanto um “talismã”. A referência à noção de livro total, de
Mallarmé, caracteriza o clássico aliado à capacidade de “ressonância” – uma
expressão mais metafórica para o diálogo operado pela intertextualidade, onde
se ouvem os ecos de outros monumentos artísticos da cultura literária no caso
do pensamento de Calvino,
[...
Trazendo
Nietzsche ao ensaio, para dialogar em um plano filosófico com a ideia de
“clássico” – é claro que, se supera aqui a pré-noção de clássico ligado à
antiguidade, o que poderia gerar uma série de considerações, mas não obstante,
de acordo com o pensamento nietzschiano “os instintos que distinguem os gregos
dos outros povos se exprimem em sua filosofia. Mas são precisamente seus
instintos <<
clássicos >>” – mas seguindo
o ensaio, tratando o sentido histórico e aproximando da percepção de que a arte
prescreve e perpetua, ele diz que “há uma ponte invisível de um gênio a outro –
aí está a verdadeira “história” objetiva de um povo; qualquer outra é variação
inumerável e fantástica numa matéria inferior, cópias de mãos inábeis.”
Passagem esta que pode levar-nos a
pensar no teor de realidade concentrada que encerra uma “obra clássica” nesse
sentido, o filósofo acentua:
<< No mundo da arte e da filosofia o homem trabalha para uma
“imortalidade do intelecto”.
Só a vontade é imortal; comparada com ela, como parece miserável
essa imortalidade do intelecto realizada graças à cultura que pressupõe
cérebros humanos: – por aí se vê a que categoria isso chega para a natureza.
(...)
A procriação platônica do belo – logo, para o nascimento do gênio
é necessária à ultrapassagem da história, ela deve mergulhar e eternizar-se na
beleza. >>
Para uma
questão de lógica filosófica avançando no encontro com nosso tema em discussão,
no aforismo de número 26 d’ O Livro do Filósofo, o alemão pontua de maneira
sempre ácida:
<< Supremamente notável que
Schopenhauer escreva bem. Sua vida tem também mais estilo que a dos
universitários – mas as circunstâncias dela são perturbadoras!
Ninguém sabe agora o que é um bom livro, é necessário mostrá-lo:
não percebem a composição. A imprensa arruína sempre mais o sentimento.
Poder reter o sublime!>>
...]
– e a obra é
dotada de uma “continuidade cultural” já que esta se encontra numa espécie de
“genealogia” – que desde a antiguidade até a modernidade amadurece seus frutos
nos galhos dos séculos sustentados no caule da história.
A
investigação da ordem dos livros “clássicos”, que interpreto mais como necessários à compreensão da vida moderna e sua constante transmutação no
contemporâneo, com seu “pano de fundo barulhento” e desestruturante, lança-nos
o imperativo processo da invenção de um acervo, como quem inventa um “entre
lugar” como a labiríntica e livresca Buenos Aires de Borges, um lugar mítico, e
“seu”, um jeito menos solitário de estar sozinho, na curta experiência da
existência.
Porque se os
“clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos”, sem dúvida,
devemos concordar com Calvino que, “ler é melhor que não ler”, numa resposta de
natureza filosófica e poética, utilitária e objetiva, fundamentalmente racional, como uma
verdadeira crítica à vida estética-social contemporânea, expressando o sentido
da experiência literária, como sendo quando, a obra fala no leitor, e através
dele, e, de outras obras, permanece.
SOBRE
O TEMPO EM BORGES.
“O dia de
hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto que nos situamos para
olhar para trás ou para frente.” (26)
Calvino ao falar sobre Jorge Luis Borges, e
relatar seu sucesso na Itália, remonta aos anos 50, com a primeira tradução de Ficciones, sob o título de a Biblioteca
de Babete. Após a leitura em tradução francesa um italiano propôs a tradução,
que precisa de um “tradutor apaixonado”, opera omnia, Calvino aponta uma relação direta entre “êxito
editorial” e o “êxito literário” dizendo que “o êxito editorial foi acompanhado
de um êxito literário que é ao mesmo tempo causa e efeito do primeiro” (p.246)
“Definição
crítica de seu mundo” e “sobre o gosto e sobre a própria ideia de literatura” (idem)
reconhece Calvino uma influencia de mais de 20 anos a partir das leituras de
Borges. Segundo
Calvino, Ficções e Aleph são exemplos centrais do conto borgiano. Observa as
metamorfoses do “Borges ensaísta, o Borges poeta com seus núcleos de conto”,
“núcleo de pensamento”,”desenho de ideias”. Para Calvino há em Borges uma
“ideia de literatura como mundo construído e governado pelo intelecto” para
isso usa Valery “prosador e pensador”, justificando que essa literatura “aponta
uma revanche da ordem mental sobre o caos do mundo.” E assim a literatura de
Borges para Calvino é “ver tomar forma um mundo a imagem e semelhança dos
espaços do intelecto, habitado por um zodíaco de signos que correspondem a uma
geometria rigorosa”.
“Razões mais precisamente conexas com a arte de escrever” permitem a emergência de uma “economia da expressão: Borges é um mestre do escrever breve” – “milagre estilístico, sem igual na língua espanhola, de que só Borges tem o segredo.” (p.248)
No contexto
da operação da linguagem entre “ideia da forma” e a “substância dos conteúdos”
Borges cria, segundo Calvino, a “invenção de si mesmo como narrador” para por
exemplo, “passar da prosa ensaística para a prosa narrativa, fingiu que o
livro, que desejava escrever já estivesse escrito, escrito por um outro, por um
hipotético autor desconhecido, um autor de uma outra língua, de uma outra
cultura, e descreveu, resumiu, resenhou esse livro hipotético.” (248)