quinta-feira, 9 de maio de 2013

CALVINO EM TRÊS ATOS: OS CLÁSSICOS, NIETZSCHE E BORGES.



 
A crítica é uma voz para quando a obra fala no leitor.

Numa edição especial que adquiri, há pouco mais de um ano, da Penguin Classics Companhia das letras, o aclamado livro “Por que ler os clássicos” do critico italiano Italo Calvino, é editado numa versão especial com dois de seus ensaios “Porque ler os Clássicos” e “As odisseias na Odisseia.” A pequerrucha edição, discreta e charmosa, me chamou atenção por um principio de estilo e sem duvida pelo exemplo. Digo exemplo, pensando encontrar aí, nesta edição, um sentido além de um exemplar comemorativo de um contrato comercial entre as editoras – Companhia das Letras e a Penguin – mas sim, uma sugestão estética que partindo dos textos e suas traduções se corporificam num ”tratamento editorial” invulgar.

Em tempos que o livro impresso vai se tornando um exemplar raro, a preocupação com a exibição e apresentação do conteúdo literário revela uma atenção sobre a questão do gosto e satisfação no exercício da fruição estética das obras. Assim como estratégia para formar “grandes leitores” e em preocupação de colocar a disposição para uma “leitura de formação”, certas obras tidas como necessárias, vêm à luz sob a bula dos livros  clássicos.

Para não incorrer no mal de nos construirmos sobre o costume de mais cita-los que lê-los, como insinua Calvino, devemos saber-nos reservados. Os ciclos de leituras (ou os cursos superiores) levam-nos a sistematizar, com algum método, o contato que temos com o mundo literário, reconhecendo na “idade madura” mais “detalhes, níveis e significados a mais”, já que, quando o leitor, “na maturidade”, configuram melhores condições para aprecia-los. 

E “apreciá-los”, ou seja, fruí-los devidamente, significa poder encontrar-se no interior do espaço da obra – esse “entre lugar” no mundo real e mundo imaginário mediado pela literatura. No processo de conhecer a realidade literária, as fronteiras entre “ler” e “reler”, sendo considerada a “perspectiva histórica”, permitem as particularidades de interpretação decorrentes da leitura.

O clássico “nunca terminou de dizer” por que carrega elementos presentes na “cultura” ou “culturas” – na “linguagem ou nos costumes” – pelas quais percorreu. Calvino opera uma distinção entre clássicos antigos e modernos. Observando sobre o significado das obras questões como “incrustações, deformações ou dilatações” e a capacidade de “reencarnação” das personagens e das obras na atualidade e uma nota importante que me permito reproduzir aqui:

A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução, o instrumental critico, a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais do que ele.   

Essa proposição reflete de alguma maneira um diálogo com o pensamento de Benedetto Croce, outro crítico italiano, que baseava-se na irredutibilidade da obra de arte.Na sua oitava tese sobre os clássicos, Calvino assevera que este, “provoca incessante uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente a repele para longe”.  Já que produz sempre “a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência” o italiano opera a distinção sobre o conhecimento que tem-se sobre as obras “por ouvir dizer” – como em Spinoza que distingue o conhecimento em três etapas do ouvir dizer, da experiência e do conhecimento de fato – e de que “quando são  lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.”

A “centelha” uma belíssima imagem que representa o momento em que somos absorvidos o para o interior da obra, para o mais real – aquilo que podemos experimentar – de seu mundo literário. Assim, o leitor, aos poucos entre uns e outros títulos, vai formando (escolhendo) os “seus” clássicos – esse conjunto de autores e obras que despertam a fagulha da imaginação e nos alçam ao mundo construído pela narrativa ou pelo eu lírico.

Aproximando em seguida a “ideia de clássico” a “um universo” o que, segundo Calvino, configura-o enquanto um “talismã”. A referência à noção de livro total, de Mallarmé, caracteriza o clássico aliado à capacidade de “ressonância” – uma expressão mais metafórica para o diálogo operado pela intertextualidade, onde se ouvem os ecos de outros monumentos artísticos da cultura literária no caso do pensamento de Calvino,

[...

Trazendo Nietzsche ao ensaio, para dialogar em um plano filosófico com a ideia de “clássico” – é claro que, se supera aqui a pré-noção de clássico ligado à antiguidade, o que poderia gerar uma série de considerações, mas não obstante, de acordo com o pensamento nietzschiano “os instintos que distinguem os gregos dos outros povos se exprimem em sua filosofia. Mas são precisamente seus instintos << clássicos >>” – mas seguindo o ensaio, tratando o sentido histórico e aproximando da percepção de que a arte prescreve e perpetua, ele diz que “há uma ponte invisível de um gênio a outro – aí está a verdadeira “história” objetiva de um povo; qualquer outra é variação inumerável e fantástica numa matéria inferior, cópias de mãos inábeis.” Passagem esta que pode levar-nos  a pensar no teor de realidade concentrada que encerra uma “obra clássica” nesse sentido, o filósofo acentua:

<< No mundo da arte e da filosofia o homem trabalha para uma “imortalidade do intelecto”.
Só a vontade é imortal; comparada com ela, como parece miserável essa imortalidade do intelecto realizada graças à cultura que pressupõe cérebros humanos: – por aí se vê a que categoria isso chega para a natureza. (...)
A procriação platônica do belo – logo, para o nascimento do gênio é necessária à ultrapassagem da história, ela deve mergulhar e eternizar-se na beleza. >>

Para uma questão de lógica filosófica avançando no encontro com nosso tema em discussão, no aforismo de número 26 d’ O Livro do Filósofo, o alemão pontua de maneira sempre ácida:

 << Supremamente notável que Schopenhauer escreva bem. Sua vida tem também mais estilo que a dos universitários – mas as circunstâncias dela são perturbadoras!
Ninguém sabe agora o que é um bom livro, é necessário mostrá-lo: não percebem a composição. A imprensa arruína sempre mais o sentimento.
Poder reter o sublime!>>

...]

– e a obra é dotada de uma “continuidade cultural” já que esta se encontra numa espécie de “genealogia” – que desde a antiguidade até a modernidade amadurece seus frutos nos galhos dos séculos sustentados no caule da história.

A investigação da ordem dos livros “clássicos”, que interpreto mais como necessários à compreensão da vida moderna e sua constante transmutação no contemporâneo, com seu “pano de fundo barulhento” e desestruturante, lança-nos o imperativo processo da invenção de um acervo, como quem inventa um “entre lugar” como a labiríntica e livresca Buenos Aires de Borges, um lugar mítico, e “seu”, um jeito menos solitário de estar sozinho, na curta experiência da existência.

Porque se os “clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos”, sem dúvida, devemos concordar com Calvino que, “ler é melhor que não ler”, numa resposta de natureza filosófica e poética, utilitária e objetiva,  fundamentalmente racional, como uma verdadeira crítica à vida estética-social contemporânea, expressando o sentido da experiência literária, como sendo quando, a obra fala no leitor, e através dele, e, de outras obras, permanece.

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SOBRE O TEMPO EM BORGES.

“O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto que nos situamos para olhar para trás ou para frente.” (26)

Calvino ao falar sobre Jorge Luis Borges, e relatar seu sucesso na Itália, remonta aos anos 50, com a primeira tradução de Ficciones, sob o título de a Biblioteca de Babete. Após a leitura em tradução francesa um italiano propôs a tradução, que precisa de um “tradutor apaixonado”, opera omnia, Calvino aponta uma relação direta entre “êxito editorial” e o “êxito literário” dizendo que “o êxito editorial foi acompanhado de um êxito literário que é ao mesmo tempo causa e efeito do primeiro” (p.246)

“Definição crítica de seu mundo” e “sobre o gosto e sobre a própria ideia de literatura” (idem) reconhece Calvino uma influencia de mais de 20 anos a partir das leituras de Borges. Segundo Calvino, Ficções e Aleph são exemplos centrais do conto borgiano. Observa as metamorfoses do “Borges ensaísta, o Borges poeta com seus núcleos de conto”, “núcleo de pensamento”,”desenho de ideias”. Para Calvino há em Borges uma “ideia de literatura como mundo construído e governado pelo intelecto” para isso usa Valery “prosador e pensador”, justificando que essa literatura “aponta uma revanche da ordem mental sobre o caos do mundo.” E assim a literatura de Borges para Calvino é “ver tomar forma um mundo a imagem e semelhança dos espaços do intelecto, habitado por um zodíaco de signos que correspondem a uma geometria rigorosa”.

“Razões mais precisamente conexas com a arte de escrever” permitem a emergência de uma “economia da expressão: Borges é um mestre do escrever breve” – “milagre estilístico, sem igual na língua espanhola, de que só Borges tem o segredo.” (p.248)

No contexto da operação da linguagem entre “ideia da forma” e a “substância dos conteúdos” Borges cria, segundo Calvino, a “invenção de si mesmo como narrador” para por exemplo, “passar da prosa ensaística para a prosa narrativa, fingiu que o livro, que desejava escrever já estivesse escrito, escrito por um outro, por um hipotético autor desconhecido, um autor de uma outra língua, de uma outra cultura, e descreveu, resumiu, resenhou esse livro hipotético.” (248)

“Assim como faz parte das passagens obrigatórias da crítica sobre Borges observar que cada texto dele duplica o próprio espaço através de outros livros de uma biblioteca imaginária ou real, leituras clássicas, eruditas ou simplesmente inventadas.” (248-249)

O que vem a ser a Estética?


Resumo

A proposição de uma discussão crítica a cerca de aspectos da teoria literária na modernidade e as implicações do poeta enquanto sujeito político, histórico no universo social contemporâneo se fazem objeto do presente estudo. A necessidade da reformulação de modelos de interpretação da realidade e o papel do artista em sociedade são, não obstante, derivados de tendências dialéticas de justaposição e, por conseguinte contraposição de conceitos e idéias pertinentes a dinâmica da criação e reprodução literária. Alicerçado em revisão bibliográfica o método se desenvolve na utilização de literatura canônica no campo da poesia. A partir de um sistema complexo de símbolos e um exercício de resignificação do sujeito em face de seu contexto social coevo, traça-se um panorama das perspectivas pós-modernas de construção/desconstrução da Arte e o todo ao derredor. Partindo de tais pressupostos em busca de novos postulados para reinterpretar a realidade, o trabalho posto traz a tona outra/nova possibilidade de percepção do fenômeno poético na atualidade.

Palavras-Chave: Poesia, Teoria e Crítica Literária, Modernidade. 
  

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Por breve e sinuoso percurso de indagações a cerca de um protótipo de compreensão e entendimento da vida e sua forma de existência dinâmica e continua, percebe-se então uma gama de alternativas de métodos ou formas, forças e fluidos que coexistem num processo de conexões simbólicas e materiais, objetivas e metafisicamente intercaladas num exemplo de rara capacidade mínima emparelhamento entre ideia e ser, ente elíptico ou sujeito capaz de exercer transformação política.

E é de modo que a Arte se faz moldura enquanto manifestação exterior do sujeito em vias de representação, de poder, de forma através da qual se corporifica a execução do homem em contato e estado de humanidade, em forma de obras publicadas e expostas a uma sociabilidade constante do processo de ser, estar, e representar a realidade emergindo qual lente de percepção se não total, mas em caça da universalização, e ao mesmo tempo campo onde se flerta com a liberdade de invenção, criação do “real”.

De tal forma, agora procuraremos nos embrenhar no óvulo do órgão rebelde e convulso das esferas de relações inerentes deste hibrido organismo nem tão globalizante, quiçá dizer mundializado que ainda assim insistimos chamar sociedade. Tal arena se configura então um conflituoso terreno para a formação e identificação dos princípios e preceitos da então organização de indivíduos em incessante mutação de máscaras culturais, sociais e políticas.

Por assim dizer, possuindo possibilidade de tomada de posição de ruptura no estratagema societal então entorno arquitetado, ainda que não ilesa de sua parcela constituída de seu inconteste sistema histórico, econômico, político a produção literária eis que insurgi enquanto espelho onde se refletem estilhaçados os valores e crenças, morais e éticas de uma época.

Sobremaneira a estética se apresenta à visão como pré síntese do entendimento dos sentidos sobre a possível interpretação do mosaico de reconstrução e criação de determinantes para a consubstanciação das condições de existência. E circunscrita a tais sistemas, a condição humana atual, imersa nesta então latente pós modernidade personifica a inconstante sucessão do desenvolvimento de hermenêuticas e teorias que justifiquem e legitimem a prática social.

No que tange a arte, este argumento validaria desde a imprevidência de Duchamp na substituição de uma satisfação estética, por um choque convulsivo para dentro de si, não obstante a justificação que há entre “beleza” e prazer, forma e fluído ainda que em ambos os casos o ponto de vista ainda seja arraigado num estrutura de pensamento reificada. Numa complexificação de propostas e causas, como

 “mercado da arte em falência”, “instituição enfraquecida”, “rede cultural opaca”, “critica de arte tímida”, “modernidade ditatorial”, “ vanguarda terrorista”, “mídias recuperadoras”, “ensino artístico anêmico”, [...] “música contemporânea elitista e confidencial”, “artistas charlatães”, “Duchamp, pai de uma posteridade desastrosa”. (Jimenez,p.379)

Ou sendo possível também, ainda segundo Jimenez, uma outra possibilidade de construção/interpretação do panorama das perspectivas a cerca da condição da arte e a estética na atualidade:

“[...] as instituições públicas subvencionam a criação artística contemporânea e salvaguardam o patrimônio, as empresas privadas multiplicam seu apoio aos artistas graças ao mecenato e ao sponsoring, um público zeloso e fiel comprime-se nos festivais e nas exposições, sem falar do papel vez maior das mídias tecnológicas do domínio da experiência estética individual.” (Jimenez,p.379)

Sucintas divagações carregaram até este ponto o fluxo do pensamento a percorrer este esconso leito que é o desvelamento das condições existenciais, ou seja, culturais, geográficas, econômicas, políticas, para a criação da explicação da natureza da relação entre a arquitetura da organização societal e a sua representação através do soerguimento de uma nova/outra possibilidade de concepção estética na arte.

[...]as incertezas, as perturbações e as exasperações marcam a história da arte? Sobretudo ao longo dos dois últimos séculos, pontuados pelas rupturas, pela sucessão dos “ismos” e pelos choques das vanguardas! A crise não designará o estado permanente da evolução artística, como o da sociedade inteira? (Jimenez,p.379-380)

Essa é uma das questões que nos trás a obra Qu’est que l’ esthétique, de Jimenez numa idéia de sentido e substância de que natureza se trata tal fenômeno societal. A busca por uma lente a cerca do olhar de como encarar a realização da idéia e da construção do fato intelectual e sua possível interpretação.

Parte-se então em direção a uma análise socioliterária e no aprofundamento duma aproximação especulativa impulsionado por uma imaginação em função dum trabalho não só cientifico de investigação, mas também a cerca de uma caracterização do poeta, da poesia e do panorama possível de apreciação da arte em sua relação direta com o seu público.      

EM BUSCA DA ANÁLISE FUNDAMENTAL: (O LEITOR) ENTRE O MÉTODO CIENTÍFICO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E O OBJETO DE ARTE SOB O OLHAR DA CRÍTICA LITERÁRIA.

Porém, a nova década trouxe o vento forte das mudanças  e o pensamento revolucionário foi tomado por uma reviravolta. (Dias, Andre. Dostoievski, um dissonante)



Recolho, aos poucos, breves notas de leitura, dispersos apontamentos críticos, análises preliminares de fichamentos, num esforço hercúleo, como quem realiza um de seus últimos trabalhos. E assim, posso constatar que a literatura é o meu subterrâneo. Começo a pensar na adoção da crítica literária como “O Grande Inquisidor”, expurgando e vivificando meus demônios.

E é claro que, entre outros tantos, Dostoievsky tem aí um lugar notável. Primeiramente porque, mesmo sem saber ainda ler russo, introduzi-me na leitura dos grandes clássicos da literatura universal (geralmente ocidentais) pela obra Crime e Castigo, em tradução – o que não é o centro deste post – mas que foi lida antes mesmo de adentrar o curso superior em Letras Vernáculas que começaria a cursar nos idos de 2005.

Ao lado de João Artur, que paripasso realizava a leitura de Anna Karenina, enquanto estudávamos na Biblioteca Municipal de Feira de Santana para posterior aprovação no vestibular da UEFS. Lembro-me de chegar ao fim daquelas centúrias de páginas, e sentir a permanência daquelas sensações psicológicas despertadas por Raskólnikov, Sônia e a velha. Continuo pensando naquele romance como um divisor de águas em minha vida de leitor. 

Sete anos depois reencontro-me com o Dostoievsky, numa leitura mais detida,  mas desta vez, no começo de 2012, em janeiro,  quando fiz uma primeira leitura, de Notas do subsolo(2009) na tradução original do russo – Zapsíki iz pódpolia – de Ruth Guimarães, numa edição barata, da Ediouro.


Hoje em dia, dotado de alguns novos instrumentais que me possibilitam adentrar ou, ao menos, observar o universo criativo da obra de arte, percebo que caminhos tomam possíveis leituras que se espalham por aí a fora. Entre algumas interpretações “possíveis”, sobre o romance russo,  me deparei com a de André Dias, que realiza uma leitura curiosamente sociológica e política, que encontrei enquanto pesquisava sobre a obra; é o olhar de André Dias que revela que “A atitude do escritor acabou por transforma-lo numa voz inconveniente, desagradável e dissonante como seu personagem que habitava o subsolo.”

O autor é apresentado como um “intelectual impertinente” levando em conta sua trajetória, “sobretudo quando olhada com o devido distanciamento histórico”, a obra  literária do romancista aponta para que “Dostoievski, com seu homem do subsolo, teve coragem de denunciar o perigo da aceitação irrestrita do determinismo racional, que inevitavelmente, conduziria os indivíduos a um vazio moral.”

É bem verdade que a novela foi pouco e, em geral, mal lida na ocasião do seu lançamento, mas não podemos desprezar o seu teor explosivo, quando lida na perspectiva de uma resposta as proposições do ativista radical. Alias, o próprio fato de a narrativa ter recebido pouca atenção na época de sua publicação e uma prova evidente de que aqueles eram tempos de polarização. Afinal de contas, em meio às agitações revolucionárias, qual o sentido de se dedicar atenção para uma narrativa cuja personagem principal era um homem sem brilho e medíocre? A primeira vista, poderia parecer que, com o lançamento de Memórias do Subsolo, o romancista fazia uma confissão de sua alienação e desinteresse pela causa revolucionaria. Pela causa revolucionaria radical ate poderia ser, mas pela situação periclitante de seu país, seguramente não. (DIAS; 2010 : 307)

Dostoiévski (1821 – 1881) poderia ter vivido por todo o século XX, que mesmo assim estaria tão próximo de nós como está, de lá, do seu século XIX. Não apenas pelo trânsito histórico que possui sua obra mas, pela carga estética e criadora que arrasta ao longo dos séculos. O texto em questão é o romance, Notas do subsolo, datado originalmente de 1864, que apresenta a consciência do homem-subterrâneo um homem esmagado entre os descaminhos da sua sociedade e imensidão de sua consciência crítica da sociedade e da condição humana.
“Já o homem do subsolo se apresenta aos leitores como um indivíduo “doente, mau e desagradável”, como de fato podemos verificar ao longo da narrativa. A contradição marca toda a trajetória dessa personagem que nos faz caminhar pelas trilhas inseguras do seu mundo ora assustador, ora lamentável, ora lúcido, ora absolutamente desequilibrado.” (DIAS; 2010 : 307)

Uma leitura crítica permite a entrevê em trechos da narrativa momentos como esse

“Como efeito, verificava sempre em mim a presença de um grande número de elementos diversos que se opunham violentamente. Sentia-me fervilharem em mim. Por assim dizer.Sabia que estavam presentes sempre e aspiravam a manifestar-se do lado de fora, mas eu não os deixava; não, não lhes permitia evadirem-se. Atormentavam-me até à vergonha, até as convulsões.Oh! como eu estava fatigado! Como estava saturado!”( p.13)

Era esse o estado do nosso narrador logo no início do romance, percebe-se uma condição não só deplorável, mas em degradação ética e a impossibilidade moral de estabelecer alguma realização ideal na sua existência. Sua aparente alusão futura, denotando uma das possíveis inspirações de Kafka para a  construção de Gregor Samsa , na confissão de que “Declaro-vos solenemente : um grande número de vezes já tentei tornar-me um inseto; mas não fui julgado digno disso.”(p.14)

A sua descrição do homem do século XIX denota claramente o sintoma que mais lhe acomete, a questão da moral... “Jamais consegui nada, nem mesmo me tornar malvado; não consegui ser belo, nem mau, nem canalha, nem herói, nem mesmo um inseto. E agora, termino a existência no meu cantinho, onde tento piedosamente me consolar, aliás sem sucesso, dizendo-me que um homem inteligente não consegue nunca se tornar alguma coisa, e que só o imbecil triunfa.Sim, meus senhores, o homem do século XIX tem o dever de ser essencialmente destituído de caráter; está moralmente obrigado a isso. O homem que possui caráter, o homem de ação, é um ser essencialmente medíocre.Tal é a convicção de meus quarenta anos de existência”(p.13)


Numa crítica ao sentimentalismo do idealismo francês de Rousseau e do Romantismo Alemão nos diz: apostava numa consciência, a partir da qual afirmava que “Uma consciência clarividente demais, asseguro-vos, senhores, é uma doença, uma doença muito real.” E assevera dois parágrafos a frente: “Entretanto – estou firmemente convencido - , a consciência , toda consciência é uma enfermidade.”

E essa dimensão de uma “consciência” produz a distinção entre o homem de ação e  os homens que pensam que são ainda distintos do homem simples, mas estúpido. Esse humanismo crítico e de uma esperança desesperada que rege a consciência do escritor e seu narrador numa espécie de “mistura abominável e gelada de desespero e esperança, é precisamente esse sepultamento voluntário, e essa existência de emparedado vivo, essa ausência, claramente percebida, mas sempre duvidosa, de toda solução é esse vínculo de desejos insatisfeitos e enfurnados, de decisões febris tomadas para a eternidade mas imediatamente seguidas de remorso, é isso precisamente o que segrega essa volúpia estranha de que falava antes.”(p.21)Segundo Dias “o romancista utilizou seu discurso literário para se contrapor aos discursos políticos totalitários”.

O homem do subsolo que tanta aversão causava com suas ações, pode ser visto como o anti-herói. Sua persona biliosa e até certo ponto perversa em nada lembra a estatura de um herói. Ele era cruel consigo mesmo e com aqueles que atravessassem seu caminho, era manipulador e torturava cruelmente aqueles com quem se relacionava. (DIAS; 2010 : 308)


O escritor, deliberadamente, escolheu se colocar em rota de colisão com o pensamento da intelligentsia radical da geração de sessenta. E importante que se diga que adotar tal posição, no caso do romancista, não tinha nenhuma relação com a ideia de um possível apoio ao regime czarista. Mais do que se posicionar ao lado de um grupo ou de outro, o escritor soube como poucos discernir o espírito de seu tempo. Só que essa capacidade de traduzir as contradições, quase sempre, vem acompanhada de um custo bastante elevado. Imaginemos a situação do intelectual que rejeitava o atraso da sociedade russa, mas via também a adesão indiscriminada a uma mentalidade ocidentalizante e capitalista com muitas reservas. Seguramente não era a mais confortável. Mais sério ainda, em um momento em que boa parte da intelligentsia se deixava seduzir pelo apelo da razão revolucionária armamentista não cerrar fileiras com o movimento seria um pecado imperdoável. (DIAS; 2010 : 306)

O autor em suas própias palavras nos diz sua posição sobre esse “pecado imperdoável”, diante deste “crime” Dostoievsky pergunta ao leitor “Mas não vos parece, senhores, que eu me arrependo e que vos peço perdão de não sei que crime? Estou certo senhores, de que ides imaginar isso... Mas aliás, digo-vos que, quer vós o imagineis ou não, isso me é indiferente”



A crítica estética filosófica ou a crítica sócio-histórica da obra de arte? II


Onde se resolve o dilema do objeto de arte entre a crítica literária e outras formas de crítica – não as quero aqui reduzir a uma mesma categoria ou método, não seria possível nem é o caso, mas partamos da plataforma original  para construção  da obra literária que é o imaginário em sua relação com o pressuposto da história social – e o ensaísmo social de base sociológica? A crítica estética filosófica ou a crítica sócio-histórica da obra de arte? E se as tomamos, quais princípios orientam as análises, ou melhor, qual das, nos levaria a uma melhor saída hermenêutica? Ou se ambas, como amalgama-las em riste, conjurar arte e sociedade, dimensão estética e imaginária com verossimilhança e objetividade, num discurso crítico e necessário? O grande enigma é: como chegar à análise fundamental? 

Propedêutica - I

el-pensador-o-escultura-antropomorfa-masculina-arrodillada-                Cultura Nok. Atribuida al subestilo Katsina Ala.
Procedencia: Nigeria/Cronología: siglo V a.C - siglo V d.C












Razões suficientes para me aventurar nesta empresa, seja ela um ciber-espaço para futuras atualizações, ou o acompanhamento de investigações de fundo crítico-sócio-histórico-literário, ainda que em forma embrionária, encontram sua gênese, em opiniões que por algum motivo aleatório, se apresentaram como possíveis pontos de vista com os quais não compartilho, ou melhor, não me permito ingenuamente reproduzir.

Internet a fora, surfam por aí dizendo que há um abismo entre as ciências sociais, em especial a sociologia, e a arte literária, e que é aparentemente uma via imarcescível para dissoluções para problemas estéticos ou de crítica literária sólida, que possa comportar questões acerca do fazer artístico da literatura.

Modestamente, não sei se é caso de tomar partido nesse momento ou se é um instante para fazer uma avaliação de que correntes de pensamento tem ocupado o território de conjecturas conceituais e teóricas no campo dos estudos literários, ao meu ver um dos segmentos do campo da Sociologia da Arte, ramo aliás, ao qual eu tenho recentemente me dedicado com certo cuidado e ressalvas, porém no entanto, não tenho deixado de realizar, por ora, incursões em terreno tão extraordinário, quanto por demais complexo.

As "razões" que motivaram a criação desse blog serão descobertas ao decorrer dos posts, o que, no entanto, não impede que eu, por enquanto, possa esclarecer que além de ter a comum ideia de compartilhar, com quem interessar possa, leituras e posteriores olhares sobre estas, fica claro que o exercício de estudar temas e autores de relativo interesse, sirva como uma postura de iniciação ao campo em observação.