sexta-feira, 21 de março de 2014

Considerações e Ecos: Renascença e Medievo, uma Socioestética para O Nome da Rosa.



A primeira necessidade, aqui, é a de conhecer, do espírito humano, sua lógica – esse novo|único arranjo entre sentidos e o precário estado das contradições do mundo exterior – de uma metafísica espiritualista e teatralizada em drama posto pela religião e desconstruída aos poucos pela ciência já na virada dos séculos XV – XVI. A demolição da retórica religiosa, posta muitas vezes, como no caso da Inquisição, pelo o discurso da demonização, bruxaria e pecado, foi praticada por conta da escola de pensamento jônio de cunho racionalista de base em Aristóteles, sua Poética, mais precisamente uma base fundamental da comédia. Pela parte dos gregos, a herança helênica se alarga sob a forma do pensamento filosófico e matemático, bem como sua noção de perspectiva, trabalhada nas artes plásticas e visuais.

A comédia tão bem trabalhada por autores como Dante A. e  H. de Balzac, seja em seu aspecto conceitual ou até mesmo semântico,  faz-nos levarmos em conta a diversidade dos gêneros literários e acadêmicos, em especial sociológicos. Fazendo-nos crer que no Index  provavelmente deveriam haver muitos  livros ligados ao drama. No roteiro da narrativa uma série de casos de assassinato, ou talvez outra possibilidade como sugerem os primeiros indícios da investigação, especulam sobre suicídios – nada mais sociológico (!), um bom caso para o Durkheim. A oração dos monges no mosteiro, preceitos e virtudes versus o riso. Enquanto a mentalidade do sujeito moderno desenvolvia a matemática, a medição da lua, a questão do passado (memória). O latim ficou entre os ratos das bibliotecas, só o conhece os que se autoflagelam. A eficácia simbólica da fé e seus signos são mediados pelo corpo, pelo poder da magia e pela crença na religiosidade. Totens tornam real, o absurdo. As representações de uma paisagem ritual atravessam a construção mitificada do extraordinário. A morte se apresenta como esse ponto de contato entre o empírico e o profético, fazendo os homens trocarem os presságios por visões. É a hora da autópsia epistemológica, começamos por partes a dissecar o cadáver da ontologia da modernidade – aquela que abusou do arsênico. Enfim, não devemos deixar de nos livrar do fetiche da maldição da modernidade. Entre máscaras góticas e figurações pagãs se estabelece a representação do demônio.

Ser intelectual é ser marcado pela chaga da heresia, como um tradutor de grego em plena época da Inquisição. Aristóteles e seus pergaminhos são ainda como pegadas de um raciocínio lógico baseado em fatos, reprodução social até à sala de leitura do laboratório de linguagens, onde a axiologia de um sistema que tende ao axioma, a racionalidade do controle social da emoção segundo o autocontrole, ganham corpo sob a forma de uma coerção coletiva sobre a qual se debruçam até hoje toda a força do sentimento humano, artistas, filósofos, copistas, pesquisadores, poetas, escritores e cientistas se fazendo as perguntas para as quais já se sabe como encontrar a resposta.




Um atentado, de repente, um atentado intelectual. Terrorismo teórico e homens-bomba explodem o método. A partir de agora é a socioestética a base da resolução da fonte da sua investigação, realizada por meio de ocupações noturnas nas bibliotecas, onde ideogramas esperam ser traduzidos. Postos a ponta do lápis, com o atrito do grafite ao papel, o código se revela pelas lentes levadas a uso no ato da pesquisa – métodos de como desocultar as provas (documentos, escritos, imagens) assim como no sexo se acha o que se está perdido, como a poesia à caracterizar a mulher.

Conversas pelas madrugadas em busca da melhor tradução, o que se fez|faz do tradutor? Aristóteles e a filosofia grega ou a poesia, e a dramaturgia da comédia reincidiram sobre as normas e questões de autonomia e valor para o pensador moderno, onde a amizade, a única relação social válida, é confrontada pelo sexo (luxúria versus a felicidade). O amor como moral, a escritura como medida da realidade.

A modernidade confessa sua fantasmagórica transformação, o fracasso de seu fetiche. A chave foi colocada na porta é preciso que alguém rode o trinco para a simplificação da linguagem no exercício de observação e conclusão de suas deduções sempre a busca de provar que está certo, que é válido seu pensamento, id est, veritas. Ante elementos como alma, memória, o debate posto entre modernidade e decadência, é retomado sob a forma da alegoria onde sempre se terá motivos pra rir diante do espelho.

                Pensando que a escritura sociológica em Ciências Sociais pode ser definida a partir da ideia de gêneros sociológicos, assim é possível re-entender toda a sociologia e bem como a validade de seus recursos racionais e proféticos além de compreender os livros, ou de maneira geral, a letra sociológica escrita como prova da finitude do homem, sob a forma do texto – científica-escritura. E como todo texto tem lá suas passagens secretas e cheias de armadilhas que pedem para serem lidas a luz de lampião ou luminárias contra a cegueira generalizada.

Diante do êxtase do descobrimento se sente descobrir os alicerces da arquitetura mental em que se sustenta nosso rizoma bibliográfico. Há ideias que estão guardadas, como que num sótão, em meio a velhas ideias é quiçá o novo uso para alguma tradicionalidade pode vir a ser modernizado de acordo com a intenção e motivo do agente congnoscente. No entanto, diante das descobertas, por seu turno, observa-se que se está diante da multiplicação, da fertilidade e da invenção da criação.

A paisagem é toda ela um labirinto hipnótico. A reflexividade é a distinção do homem renascentista frente o homem do baixo medievo, com algumas exceções de tovadores principalmente os provençais como Rimbaut de Vaqueiras, onde se contradiz essa visão da mulher como o pecado em si e|ou bruxa. As categorias passam a conceder potência de realidade ao real. A “presença|ausência” de elementos como água, a tortura, a privação da liberdade, a erudição e o Quasimodo, a pobreza dos vassalos da Igreja (bárbaros europeus do ocidente) dá mostras do que compunha o universo da época renascentista, tornado acessível por meio das palavras e dos sentidos que elas significam: amor, morte, roubo e posse, celibato, rituais, solenidade e magias. (Nesse momento eu radicalizo as fronteiras entre sociologia e literatura).



Instituições como a crucificação, a fogueira, o sermão, em que se distingue preservação e perscrutação, a segunda que nos leva a uma anomia a história hegeliana, opondo-se desta forma a teoria do reflexo construída pela Ideia de linearidade e sucessão histórica cronologicamente e sincronicamente arranjada, quando na verdade a diacronia é a chave para essas intensas retomadas da modernidade.

O outro, assim como o novo, procuram pela modernidade enquanto esta faz séculos que espera por esta visita. O suplício da ciência só não acontece devido ao poder da recursividade do discurso sociológico posto na encruzilhada científica, onde as páginas estão em chamas enquanto envenenamos o corpo e confundimos a mente na cela da consciência – cega guiada pela razão.

Amigos leitores, livrem suas leituras dos sinos e queimem entre os livros! Porque a sociologia é qual o combustível à maneira de recuperar o sentido do pensamento, como o fez Prometeu quando aos homens o fogo ofertou. Põe-se em fuga a igreja – com seus preceitos – e a assim o mundo é posto em revista pela população entregue a sua terrível realidade de desigualdade e pobreza.

E ao aprender a carregar consigo os livros é que se pode continuar a aventura quixote-dantesca pela estrada que ao caminho obscuro e tenso, orientados pelos óculos, quase como amuletos, esquece-se vaidades e orgulhos intelectuais e, a partir de então, mestres e discípulos podem (re)estabelecer a tradição da ciência e assim encontrar maneiras de pensar, compreender e transformar a social-realidade.  


quinta-feira, 13 de março de 2014

Poesia, teoria e tradição.




Na literatura, na virada da Idade Média para a era Humanista, marcada pelo racionalismo renascentista, a  história da poesia dita como feita na era moderna é marcada por obras como o Paraíso Perdido de Milton, o épico inglês,  a Divina Comédia de Dante, na Itália e Os Lusíadas de Camões, no caso português. Essas obras de alguma maneira erigem o paradigma da literatura ocidental após o Renascimento. Para evitarmos ingênuas  apropriações de cânones predeterminados, vamos considerar que essas obras entre outras, nos servem até hoje como símbolos, ou espécies de totens literários com uma significativa influência em seus idiomas, e além deles, ao mesmo tempo em que exercem uma singular e permanente  resistência na crítica e no debate da teoria literária até  os dias de hoje.

Assim, o potencial de condensação estética permite que alguns textos tenham um sentido de permanência. Ou seja, de se fazerem presentes na atualidade nos remete a um movimento hermenêutico   de traduções, críticas,  pesquisa, releituras  para que se possa chegar a novas interpretações, de obras já lidas e relidas. De maneira que, com isso, somos levados muitas vezes à aporias como entre  pré-noções que tratam da arte racionalista e arte sensorial, ou nos termos de Max Bense, entre poesia natural e poesia artificial, ou até mesmo, arte figurativa e arte abstrata,  já que, precisamos antes de encarar os textos, presumir que a arte inventa a realidade ao mesmo tempo em que traduz o real. A arte não imita a realidade, é sua co-criadora, em estado de reflexividade.

À poesia cabe o verso – do latim verter,  vertere, que quer dizer voltar, ou seja, uma noção muito usada para definir a atividade tradutória.  A poesia – arte última, efeito do pensamento – diante da crítica se compreende que “o estudo do belo é um duelo em que o artista grita de pavor antes de ser vencido”.
Existe a teoria, a visão, em seu sentido grego, no entanto a historiografia literária, com todos os seus problemas, resiste. Se o momento histórico interfere na produção literária e no discurso literário há o discurso histórico humanizado, logo a literatura é transhistórica: já que articula todos os saberes indiretamente, tomando a realidade histórica para criar a realidade humana para dizer a realidade de outro modo, e ao desdizer a realidade ela trabalha na fronteira do dizível e do indizível a operar por imagens.
Através de uma linguagem plurifacetada, plurivocacionada recupera o conhecimento enciclopédico.  Na arte, o saber encena.  E como para Nietzsche “não existem fatos tudo é interpretação” podemos dizer que a interpretação, se acontece, é a partir da retirada literal de aspectos importantes da visão literal. As demais correlações que compõe a interpretação são consequenciais. Nós somos o sentido que criamos para o mundo: seja ele religioso, artístico ou científico.
Se a atual situação da literatura faz urgirem poetas-tradutores-críticos todos no afã da próxima descoberta, então se conclui que a infelicidade não está no que se tem, mas no que se espera conquistar, já que toda observação é objetiva e subjetiva então, a obra, ao falar por si, existe no emaranhado.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Academia e Ciência.

Mutatis mundanis – Universitas.



Na Grécia antiga existiu a Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles. Durante o império romano a Escola de Alexandria. Na Idade média, os mosteiros católicos tornaram-se centros de concentração da literatura e conhecimento em geral acumulado até aquela etapa histórica, nesse sentido o desenvolvimento do ensino, advinha do exercício da memória e dos ímpetos da pesquisa.

Com o desbloqueio das técnicas e principalmente com a revolução agrícola, a agronomia permitiu uma revolução no campo e assim na sobrevivência dos sujeitos sociais. Dessa forma a massa crítica, essa fatia reservada a vida intelectual, ampara pelo uso de óculos, com a recente descoberta do funcionamento mais sofisticado das lentes aliando ao ócio do mundo do trabalho, a existência de tempo para especulações, deduções, induções e intuições.

De forma que a ciência – razão conhecida, descoberta, encontrada – e a tecnologia – conhecimento aplicado, objetivado – colocam-se ao lado a arte – procedimento – e da técnica – aplicação da arte. A primeira academia foi criada em 1287, a Universidade de Bolonha, onde se aprendia a Lógica, Gramática e Retórica, além de Aritmética, Astronomia e Música. O que nos permite observar uma correlação entre o conhecimento artístico e cientifico, de maneira muito diferente de como se comporta hoje o campo do conhecimento na modernidade, especializante  e redutora.

Do Renascimento ao início da Revolução Científica, ocorrem os nascimentos das academias científicas na Itália. Giordano Bruno, Galileu Galilei desenvolvem a luneta, para observar lua e realizar o estudas marés, superfície, ambos trabalharam na produção de uma visão macrocóspica e sistemática que sofreu forte intolerância religiosa por parte da Igreja Católica. 

No complexo acadêmia e ciência ainda pode-se apontar a alquimia desenvolvida por Paracelsus ou Bacon com a narração do mito da Nova Atlântida. Já no caso da revolução hermenêutica do conhecimento a exegese operada com a tradução da Bíblia do latim para o alemão foi uma das revoluções no plano da linguagem que exemplifica um dos pontos de partida para a era moderna. Continuar pensando em termos de crítica como a partir da dúvida filosófica ainda é um sinal de  que a ciência  enquanto arte de inventar  pode redefinir o que entende por tradição e modernidade num jogo articulado de inovação e resitências entre a academia e a sociedade.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Leitura latino americana de um luso-oriental.


Lúbrica

Quando a vejo, de tarde, na alameda,
Arrastando com ar de antiga fada,
Pela rama da murta despontada,
A saia transparente de alva seda,
E medito no gozo que promete
A sua boca fresca, pequenina,
E o seio mergulhado em renda fina,
Sob a curva ligeira do corpete;
Pela mente me passa em nuvem densa
Um tropel infinito de desejos:
Quero, às vezes, sorvê-la, em grandes beijos,
Da luxúria febril na chama intensa...
Desejo, num transporte de gigante,
Estreitá-la de rijo entre meus braços,
Até quase esmagar nesses abraços
A sua carne branca e palpitante;
Como, da Ásia nos bosques tropicais
Apertam, em espiral auriluzente,
Os músculos hercúleos da serpente,
Aos troncos das palmeiras colossais.
Mas, depois, quando o peso do cansaço
A sepulta na morna letargia,
Dormitando, repousa, todo o dia,
À sombra da palmeira, o corpo lasso.

Assim, quisera eu, exausto, quando,
No delírio da gula todo absorto,
Me prostasse, embriagado, semimorto,
O vapor do prazer em sono brando;
Entrever, sobre fundo esvaecido,
Dos fantasmas da febre o incerto mar,
Mas sempre sob o azul do seu olhar,
Aspirando o frescor do seu vestido,
Como os ébrios chineses, delirantes,
Respiram, a dormir, o fumo quieto,
Que o seu longo cachimbo predileto
No ambiente espalhava pouco antes...
Se me lembra, porém, que essa doçura,
Efeito da inocência em que anda envolta,
Me foge, como um sonho, ou nuvem solta,
Ao ferir-lhe um só beijo a face pura;
Que há de dissipar-se no momento
Em que eu tentar correr para abraçá-la,
Miragem inconstante, que resvala
No horizonte do louco pensamento;
Quero admirá-la, então, tranqüilamente,
Em feliz apatia, de olhos fitos,
Como admiro o matiz dos passaritos,
Temendo que o ruído os afugente;
Para assim conservar-lhe a graça imensa,
E ver outros mordidos por desejos
De sorver sua carne, em grandes beijos,

Da luxúria febril na chama intensa...
Mas não posso contar: nada há que exceda
A nuvem de desejos que me esmaga,
Quando a vejo, da tarde à sombra vaga,
Passeando sozinha na alameda...

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'




Primeiro poema de Pessanha, publicado em 1885, Lúbrica é uma peça literária feita de ópio e poesia. Na abertura do poema, a construção “a vejo” nos deixa uma sutil indicação sobre a leitura. Quando o poeta aponta para uma visão indeterminada, que não permite definir o que vê, com isso, abre precedente para a interpretação de que “LÚBRICA” é uma alucinação do ópio. Mais propriamente, uma “visão” de forte impacto de tal maneira enlevante causada pelo uso do excitante – provavelmente, podemos realizar essa consideração principalmente por fatores biográficos da vida do autor como sua estadia em Macau, período no qual realiza um constate uso de opiaceos. Além da citação no poema de representações de chineses, semelhante as  que se observam em Fernando Pessoa no poema Opiário e Pablo Neruda em El ópio en Leste.


Mas não apenas.  Quando escreve “com ar de antiga fada”, sua descrição da figura avistada é toda ela feita de alegorias e metáforas deslocadas da realidade concreta e mais imediata, a não ser como efeito de cenário – que no contexto dever ser mesmo a descrição mais próxima do mundo concreto – aproximando tanto a narrativa do texto poético quanto as suas imagens a um universo não literal, ainda que sua sugestão ao leitor é a de uma aparente figura “real”. No entanto a figuração desta presença feminina no jardim é sublimada, assim como na referência à fada, figura irreal, que povoa os contos e histórias fantásticas, pode ser vista como um indício de que a visão tem influências transcendentais.  Adjetivos usados como “transparente” para descrever a personagem e seus adereços só corroboram a ideia de que o poema trata de um instante inefável, no qual a sensação de transparência revela a coisa etérea.


A posição do poeta, expressa mediata seu eu lírico é exata. Correspondente ao estado de meditação, enquanto uma como categoria de elevação do pensamento, consequentemente sob o efeito do flor oriental, que permite alcançar a possibilidade do “gozo” prometido. Os dois versos seguintes nos deixam ainda mais claro que, de fato, onde a imagem acontece e todo o poema tem forma e cor, onde a “Lúbrica” de fato existe e está é na “mente” do poeta – “Pela mente me passa em nuvem densa / Um tropel infinito de desejos”. Na “luxúria febril na chama intensa” denuncia de onde parte a miragem: inevitavelmente de algum torpor com origem no ato de queimar o ópio. E então o poema e sua construção se revelam:


Mas, depois, quando o peso do cansaço
A sepulta na morna letargia,
Dormitando, repousa, todo o dia,
À sombra da palmeira, o corpo lasso.

Assim, quisera eu, exausto, quando,
No delírio da gula todo absorto,
 Me prostrasse, embriagado, semimorto,
 O vapor do prazer em sono brando;

“Cansaço”, “morna letargia”, “dormitando, repousa”, “o corpo lasso”,  bem como: “exausto” “no delírio da gula”, “prostrasse”, “embriagado”, “semimorto”, “o vapor do prazer em sono brando”, denotam o clima de torpor em que embebido o corpo dela revela a condição na qual se encontra a mente do poeta, e por sua vez o sujeito da voz poética anunciada se equaciona diante da imagem poética por ele construída, tornando o criador sua própria criatura. Assombrado assim pelos “fantasmas da febre”, o poeta encontra com esta aliteração (uma solução poética de um extraordinário valor estético) a dimensão do estado em que se acha o escritor, e talvez seja a melhor definição da LÚBRICA – um fantasma que só é possível de ser visto na febre que o ópio lhe causa. Em seguida dois versos abaixo desta afirmação de fantasmagoria, o verbo aspirar diz respeito à ação de usar o entorpecente, assim como se faz ao fumegar, fumar.

"Como os ébrios chineses, delirantes, /Respiram, a dormir, o fumo quieto,/ Que o seu longo cachimbo predileto/ No ambiente espalhava pouco antes...". Estes versos compõem a estrofe chave. O que nos aproxima de nossa tese, já que, ele mesmo diz que, no ambiente provavelmente onde o poeta estava, se espalhava o olor do queima do ópio e a fumaça que exalava dos cachimbos conduzia a “essa doçura” [...]/ “Me foge, como um sonho, ou nuvem solta”. O que, com certeza, nos remete a sensação de prazer causada pelo ópio, e o efeito em que estava se envolve, também compõem o quadro semântico de palavras que nos inspiram a levar adiante nossa interpretação, já que o poeta diz em seguida que: “Que há de dissipar-se no momento /Em que eu tentar correr para abraçá-la,/ Miragem inconstante, que resvala/No horizonte do louco pensamento”.

E novamente imagens como fuga, sonho e nuvem, tocam a ideia de uma imagem praticamente surreal que ao “dissipar-se”, “miragem inconstante”, a ideia de que desaparecerá quando for tentar tocá-la, revelam ainda mais a condição de estamos adentrando “no horizonte do louco pensamento”, só encontrados em estados espirituais e de transe muito particulares. Eu bem queria me alongar, mas como escreveu o poeta,  [...] não posso contar: nada há que exceda /A nuvem de desejos que me esmaga”, então, uma imagem como esta que denota a sensação de uma “feliz apatia”, nos faz, assim como na canção, retomar na “chama intensa”, os fantasmas da febre que se sente enquanto se despeja o delírio em que se esmaga.

terça-feira, 4 de março de 2014

Octavio Paz - tradução.

ÁGUA NOTURNA

A noite de olhos de cavalo que tremem na noite,
A noite de olhos d'água no campo dormido,
está em teus olhos de cavalo que treme,
está em teus olhos d'água secreta.

Olhos d'água de sombra,
olhos d'água de poço,
olhos d'água de sonho.

***

AGUA NOCTURNA

La noche de ojos de caballo que tiemblan en la noche,
la noche de ojos de agua en el campo dormido,
está en tus ojos de caballo que tiembla,
está en tus ojos de agua secreta.

Ojos de agua de sombra,
ojos de agua de pozo,
ojos de agua de sueño.

OCTAVIO PAZ


tradução: Camillo César Alvarenga

domingo, 2 de março de 2014

Jenner Augusto (1924-2003) onze anos sem o sergibaiano.




Sem jeito para escrever o que deveria e da maneira necessária, o que farei aqui logo em breve, registro, aqui o aniversário de 11 anos do passamento deste artista plástico que merece dos contemporâneos um novo olhar para sua agência modernizadora nas artes visuais brasileiras no século XX. Assim esse sergipano de Aracaju, nascido ainda nos anos de 1924, que encontrou seu auge artístico nos temas e motivos que lhe legou a Bahia a partir dos anos de 1950 e assim por diante nas décadas seguintes. 

A sua fase baiana é marcada por uma estética que interpenetrando um avanço abstracionista redefiniu a percepção figurativa em linhas e contornos em que primeiramente a mescla entre um expressionismo e cubismo dão notas formais a obra, numa expressividade complexificada pelos temas sociais e onde o lirismo é marcado por uma subjetividade sempre em suspensão pela amálgama de cores e contornos difusos e em rearranjo constante no jogo entre a figura e seu toante potencial de abstração.

Na falta momentânea das melhores palavras para falar do artista, entrego o direito a quem o usou com justiça, entre eles poetas como Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade.

***

Jenner Augusto, Artista Pintor

Trouxeste de Sergipe
A contida paixão, a ascese, a fome, o fulcro
Da alma nativa, a agreste crispação
Da mata branca da caatinga, a alta tensão
Da palha de onde os pássaros
Se picam ao latir dos estampidos
De uma nova vingança, os descaminhos
Da vingança, os paroxismos
Da herança, as consoantes da palavra honra
O fulgor azul das lâminas o grito
Vermelho dos estupros, o olho injetado e morto dos coágulos.


Reassumiste Cézanne com pincel molhado
Na polpa dourada das mangas
E com o amarelo adstringente dos cajus
Resumiste o cubismo de taipa
Do casario a duas águas dos velhos povoados
Do teu Nordeste e da tua infância, em piedosas cores frias
Com que amenizá-los da canícula.


Súbito vomitaste Azul nos pântanos podres
Dos Alagados, recriando singapuras
De lixo, erguendo hong-kongs de palafita
Por entre o mastro dos saveiros, fazendo longes...


Nos amplos espaços do Recôncavo
Reafirmaste a luz e a cor em abstrações
Precisas, perdido de violeta paixão por crepúsculo
E auroras, dando vez ao jaguar que mora em ti
E a tudo espreita através do oco das órbitas
De caminhar entre nuvens, fulvo e elétrico
Transformando sons em cores
Na rigorosa pauta do infinito.

Para mim, quando o vi (quadro soberbo!)
Pintaste Peteleca (sem sabê-lo...)
A jovem e pequenina puta negra
Que aos estudantes sempre da primeiro
Não só porque é por eles adorada
Como porque em geral não têm dinheiro
E que nas noites de Salvador
Vive alegre, volátil e sem medo
E que, se bem notardes, quando passa
Tem um aro de luz sobre os cabelos.

Meu irmão Jenner Augusto
Pintor dos que mais sabem e mais aprendem
Cheio de inexprimível piedade
Pelo homem, esse bicho tão pequeno,
Pinta-me uma cidade
Onde se viva em paz, se sofra menos
Uma branca cidade
Sempre crepuscular e em tons serenos
Onde eu possa iludir-me
Sobre o amor, sobre a dor e sobre o tempo
E morrer me esvaindo
No doce balbucio das estrelas.


VINICIUS DE MORAIS





"Alagados"

Casebres à flor d´água
Balançam
No silêncio
No sonho de viver
O sonho de morrer.

Jenner Augusto sob o céu de chumbo
Sob o céu violeta
Lê o horóscopo das criaturas
Que nos alagados
Morrem sem viver.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
***
Os primeiros Habitantes de Sergipe, 1961.

Usina da Preguiça, s.d.
São Félix, 1977 

A Rebentação do Recôncavo

Canto em duas Cordas para o vale do Paraguaçu.
SCOMBROS (p.88-89, 2012)


I

A Planície da Revelação


À minha querida avó, octogenária de fôlego,
por possibilitar tal visão…

Canibais as silvícolas saúvas...

É toda herança, vã fortuna;
A beleza, corta-lhe a cabeça,
qual Vênus sem braços…

Por nunca pôr a farda, mais
gosto é de dar trabalho… Eu,
que de Garrincha as pernas tortas,
Coringa nas cartas do baralho

Cavo no Recôncavo a cova…
Ó, se- fico-me nos séculos inteiro
À Ponte procura o canoeiro,
o estaleiro é só mágoas e cansaços.

Foste dedilhar teus dígitos,
Pilhar dos contêineres as cargas
Foste digitar teus dísticos…

(Por desertos oceanos busquei
Um decassílabo nas décadas
Em cada aeroporto, em cada
Aurífera manhã, disforme…)

Fragmento na distância derramada
substância que evapora. A estrutura
qual lego se desmonta, qualquer miragem
sem ortografia, o segredo cinéreo

Ao meio nevoeiro, o etéreo revelar…
Ondas que o vale amordaçam
Vem esmigalhar mistérios,
A líquida epifânica planície

Que em taça o horizonte
encerra…
Amanhece…

Astrólogo dos séculos, que a tudo
tem criado, enciclopédico animal
sem óculos, os rins um dia o pararão,
sinuosa alma em cruz ilhada entre montanhas.


II

Côncava Imagem

Canhões e cais gravitando em tua órbita…

Desta teoria imprecisa
Emerge arquitetura precária,
Qual névoas do Himalaia
Em seu cérebro mutante.

Das brumas revelam-se ninfas
Em seu fluido…
Eu, não sou bom com poemas
Mais a pena insiste enfardar-me

Vós dizeis-me vagabundo,
Não mas que o malandro
Que prefeita sobre vós:
Incrédulos e insensatos.

A corja as custa se nutre;
O que és-tu, esfíngica-miragem?
“Paraguaçu não é Senna”.

Falsa fábrica de ânsias nervosas,

Absurda indústria da fantasia.